Também quero ser cuidada
Minha independência não é uma arma apontada para a minha cabeça
Cresci numa família patriarcal contraditória. Minha avó, a delegada, sobre a qual já falei tantas vezes aqui, foi quem primeiro bateu o pé quando seu pai - que, costumo dizer, foi minha pessoa favorita - disse que ela não deveria seguir o caminho dos estudos do Direito.
Quando se tornou delegada, imagine só.
“Minha filha, minha filhinha, delegada?!?!?!”.
Delegada, termo que mal aceitava ser posto no feminino naquela altura. Minha avó, a delegada, que se tornou para sempre a voz mais cruel na minha cabeça quando o assunto é padrão estético e pressão pela magreza extrema. Uma mulher independente, dona de si, livre até mesmo para ser um pouquinho má consigo mesma e com as que viriam depois.
Minha mãe, desde que consigo me lembrar, também ocupou cargos de liderança. Essa posição me proporcionou um desenvolvimento psíquico, hoje percebo, complexo. A criança que fui, a mesma que chorava todas as noites de domingo, porque sabia que passaria cinco dias mal vendo a mãe (ela saía muito cedo e voltava muito tarde), também foi a garota que constantemente pensava: “Minha mãe é foda”. O reconhecimento que minha mãe sempre teve, enquanto profissional competente e ser humano excepcional, me impulsionou a me tornar muito do que busco ser hoje. 1% do que ela foi e é já me basta.
Nossa dinâmica familiar é curiosa. Nunca tive de fazer mais tarefas domésticas que o meu irmão. Se eu cozinhava, ele lavava a louça. Se eu limpava o banheiro, ele tirava o lixo e fazia as camas. Felipe e eu somos iguais desde que viemos ao mundo, ao menos nisso. Seres humanos que foram criados para funcionar igualitariamente para além dos nossos pais. Felipe, talvez ainda mais neurótico com limpeza do que eu - e, se algo está sujo, ele vai lá e limpa; ele não pede nem transfere, e definitivamente não finge que não viu. Minha cunhada é uma mulher de sorte, ainda bem.
Apesar disso, não saímos ilesos a algumas contradições. Sim, estou falando de sexo. Mas não só. Há também, por exemplo, o fato de que, apesar de incentivarem plenamente nossa liberdade, nossos pais nem sempre aceitaram nossas decisões de forma pacífica - você é livre para fazer o que eu penso ser melhor para você. Concomitantemente, nossos pais nos motivaram a ser autossuficientes, o que é uma faca de dois gumes; até hoje, eu e Felipe temos dificuldade de pedir ou aceitar ajuda mesmo dos nossos amigos mais próximos sem um sentimento de culpa ou medo. Eles tiveram seus motivos, e às vezes é reconfortante saber que a gente pode se bastar, mas só até certo ponto. A verdade é que viver e depender do outro é assustador, entretanto, talvez seja a verdade mais inescapável da experiência humana.
Enfim, estou dizendo que naveguei ambientes complexos nos meus primeiros anos. Estudei em escola católica tendo pai comunista e policial. Tive uma avó brutalmente forte e independente. Minha mãe era uma líder, que às vezes não podia aparecer nas apresentações da escola.
Quando me descobri e me compreendi feminista, lá pelos dezenove, tudo isso já era cimento dentro de mim. Desde então, tive três namorados. Nenhum deles me pediu em namoro. A menina que cresceu vendo filmes da Disney e sonhando com um príncipe passou a se convencer de que ela não precisava de nenhum pedido formal, algo tão antiquado, quase antifeminista. Quem precisa de romance? Dias dos namorados ignorados, tudo bem, o dia dos namorados é uma invenção capitalista. O romance é uma mentira que nos contaram para que a gente comprasse mais e mais. Hoje, olhando em retrospecto, acho que estava tentando me convencer de algo que, no fundo, eu não acredito tanto assim.
De mentira em mentira, fui abrindo mão de muita coisa que eu adoraria viver. Fui deixando de pedir pelo básico, muitas vezes, porque pedir pelo básico era quase como que rejeitar todos os meus ideais feministas. E aqui falo do aspecto mais delicado dos gestos de amor, das coisas “antiquadas”. Que ousadia querer flores, eu sou feminista. Que ousadia querer que meu parceiro demonstre cuidado em atos tão banais quanto esperar que eu chegue em casa em segurança. Que infantilidade. Mas eu não sou infantil, eu não sou boba, eu sou a neta da delegada, a filha da chefe, isso não condiz com quem eu sou.
Exceto que condiz. Toda a independência que o feminismo me ensinou, e minha avó me provou, é o que me permite chegar, hoje, ao ponto de dizer que quero sim poder ser cuidada, e quero que esse cuidado seja demonstrado em atos possivelmente banais, mas importantes para mim. Quero flores, jantares preparados de surpresa, bilhetinhos de amor ao acordar, “deixa que eu faço” ainda que eu saiba que eu mesma consigo fazer. Quero saber que posso abaixar a guarda às vezes, pois estou em segurança. Quero não precisar pensar, só, em todos os detalhes que envolvem o gerenciamento de uma casa, porque espero que meu parceiro tenha sido tão bem criado quanto meu irmão. Todo o lado bom da convivência humana debaixo dum mesmo teto, todas as partes boas que meus pais me ensinaram, quero reproduzir no meu lar.
Meu pai nunca se recusou a lavar as louças, ainda que minha mãe, por vezes, precisasse pedir. Ela precisar pedir enfureceria muitas pessoas. Minha mãe, entretanto, conseguiu manter o lado mais doce do que ela é, e pedia, sem precisar repetir. Ela a chefe, mas doce e paciente. Ela a esposa, mas independente. Tudo que coexiste entre um termo e outro foi o que minha mãe conseguiu ser. Meu irmão e eu crescemos sabendo que parceria é isso, porque meu pai jamais deixou de acordar todos os dias antes da minha mãe para preparar o café dela. Este tipo de cuidado, de zelo, de carinho, do qual ele nunca abriu mão e ela nunca se cansou, é nada mais do que eu e qualquer mulher merecemos.
Quem precisa de romance? Todo mundo. Ao menos um pouquinho.
Tem um ponto aqui que vc tocou que, como pesquisadora de cuidados, me sinto obrigada a explorar: a ideia de cuidado interdependente e como direito e dever universal é o caminho para a democracia plena. a ideia de independência e autonomia absoluta são uma falácia alimentada e potencializada pelo neoliberalismo. E aí disso o feminismo liberal se nutre muito ne?! O feminismo revolucionário não almeja sermos menos cuidadas, ao contrário todo mundo precisa aprender a cuidar e se deixar cuidar. Ai claro que os homens precisam aprender mais. Se cuide e se deixe cuidar minha querida!!! Um beijo grande daqui!
Esse texto bateu doído, porque para mim, o romance também tem um aspecto de “merecimento” muito sofrido: o romance é para as “escolhidas”, não para mim. Por isso, eu preciso ser a “garota legal” e desencanada que não faz questão de comemorar o dia dos namorados e acha que ganhar flores é uma besteira. Aí ganha um nível de complexidade muito revoltante quando a gente passa a crer, como você aponta no texto, que cuidado, delicadeza ou romantismo faria da gente menor, menos capaz ou menos feminista. E nessa, a gente vai se esforçando para esconder nossas dores e se adaptar, se contentar, enquanto os companheiros não precisam se esforçar emocionalmente para fazer o relacionamento bom para os dois. E isso, pra mim, custa mais do que louças lavadas.