Aviso: este texto contém spoilers. Eu, que costumeiramente não me incomodo com eles, talvez recomende que você volte aqui só depois de ter visto o filme. Se você não vive embaixo duma pedra, provavelmente sabe que se trata de um manifesto feminista numa Holywood moldada por homens, uma espécie de ode ao envelhecimento feminino, ainda que guiada pela raiva (muito possivelmente, nossa melhor conselheira). Uma artista, Elizabeth (Demi Moore), envelhece, não quer envelhecer, e acaba recorrendo à uma substância clandestina para criar uma versão mais nova & mais perfeita de si mesma, Sue (Margaret Qualley), tudo isso sob a ótica e a fotografia vibrante da ótima da diretora francesa Coralie Fargeat. Se é isso que você sabe, pare aqui, vá ver o filme assim, de forma crua, e volte depois.
A Substância me prometeu muito, e me entregou ainda mais do que havia prometido. Para começar, permita-me registrar alguns aspectos obviamente ótimos. As referências são inúmeras: Réquiem Para Um Sonho, Lolita, O Iluminado, Carrie, Bastardos Inglórios, A Mosca, O Homem Elefante, 2001: Uma Odisséia no Espaço, Cisne Negro, Psicose, e provavelmente alguns outros que me escapam agora. Essas referências não aparecem com medo de se mostrarem, pelo contrário, são escancaradas, de modo que em muitos pontos me pareceu que a diretora pretendia que seu filme fosse uma homenagem aos que vieram antes, e mais que isso - uma perspectiva feminina e feminista de tais referências.
O filme usa e abusa da metalinguagem, não só para demarcar de onde Coralie Fargeat veio, mas sobretudo para registrar aonde ela quer ir - e vai, principalmente com todos os close-ups intencionais da bunda, dos peitos, dos braços e de todas as partes milimetricamente demarcadas no corpo de Sue (não é ótimo quando as coisas todas estão no lugar certo?). Dizer que ela copiou quem veio antes é simplificar muito a obra, quase um desrespeito. Podemos mais, vá.
Em segundo lugar, a fotografia. Houve uma época da minha vida em que eu era apaixonada por acompanhar os filmes do Oscar, com apostas e tudo mais, época em que eu me esforcei um bocado para compreender que fotografia é realmente um aspecto importante de qualquer filme. Neste caso, em específico, desde o casaco amarelo olhem-para-mim, que as protagonistas usam repetidas vezes, passando pelas escolhas de enfatizar alguns aspectos (como o camarão asquerosa e lentamente devorado pelo personagem do Dennis Quaid, ou as carcaças de frango deixadas para apodrecer na enorme sala de estar), e ampliar outros (por exemplo, o banheiro hospitalar que Elizabeth, por qualquer motivo que seja - e fica a seu critério -, tem na própria casa), Fargeat deixa evidente, a partir de suas escolhas de lentes e cores, que aqui temos mesmo a fotografia como uma espécie de personagem principal, não só um elemento compositivo da obra.
Mas, sim, perdoe, caro leitor, esses dois parágrafos pomposos. Vamos ao que interessa: estou maluca com este filme por outros motivos tantos.
Fiz trinta anos no dia trinta de agosto. Já falei disso reiteradas vezes por aqui, e isso significa algo: este ano, também virei mestre, também reiniciei minha vida num outro país, também passei por uns desafios bem difíceis no âmbito pessoal, mas nada martela mais minha cabeça do que o fato de que já não estou na casa dos vinte. Há um misticismo na casa dos vinte que escapou às minhas mãos como areia fina. Já não tenho mais a passabilidade, não sou objeto de desejo como outrora experimentei ser, não gero imediatamente um tesão masculino que muito é baseado na minha ingenuidade ou ignorância, na minha incapacidade ou incompreensão sobre limites, dada a habilidade deles, desde sempre, de me manipular, convencer ou fazer comigo o que bem entendem; não sou mais uma menina.
Não sou mais a Lolita do meu professor de biologia dos tempos de escola - complexo cenário que me despertou uma longa sessão de choro durante a terapia, quando entendi que aquela menina jamais podia ou devia ter sido colocada em tal papel, e cenário complexo justamente porque fui vítima ao mesmo tempo em que gostei do que recebi, uma espécie de validação quando precisava muito disso; gostei durante muito tempo, júbilo este que virou acusação, depois culpa, aí pena, e hoje, finalmente, é casca.
Sou uma mulher. Mulher com M maiúsculo.
Esses dias, enchi meu rosto de botox. Não vou sequer tentar negar a satisfação que me dá franzir a testa e não ver uma ruga sequer. A partir dos trinta, o botox preventivo dos vinte já não é mais uma mera sugestão, passa a ser paupável - além de um claro sinalizador de status. Mas, para além disso, se deixo de passar hidratante no rosto antes de dormir, no dia seguinte consigo sentir a pele esticando, seca, quase implorando por alguma coisa. Eu poderia dizer que isso é reflexo do meu interior, mas esse tipo de filosofia barata não me comove. Não estou apodrecendo, pelo contrário, me sinto cada vez mais bonita e dona de mim. Mas vivi o suficiente para saber que a aproximação dos quarenta há de me apavorar a qualquer momento, como num susto que, paradoxalmente, sempre soube que chegaria para mim.
Uma das coisas mais marcantes que ouvi, ainda menina, de minha avó materna, foi a seguinte frase: “cada dia que você dormir sem maquiagem vai equivaler a trinta anos para a sua pele”. Minha avó materna, leitor, aparece muito por aqui, a qualquer momento ela vai se tornar quase uma velha conhecida de quem me lê, sei disso. E talvez seja ela a voz mais constante nos meus pensamentos, essa figura que incutiu tanta coisa na minha cabeça infantil, a mesma que seguirá comigo até o fim dos meus dias. O pavor de dormir com maquiagem revela, hoje, muito sobre a personalidade daquela mulher. Minha avó tinha medo de envelhecer, e via na maquiagem quase que um aspecto formativo de sua personalidade; tirar a maquiagem para dormir era uma forma de se despir, preservando, contudo, a embalagem que a pele representa - embalagem que também devia ser olhada com atenção. Não havia a opção de não usar maquiagem, como não havia a opção de não tirar a maquiagem para dormir, um constante fazer e remendar, montar e desmontar, construir e destruir, um trabalho interminável ao qual só a figura feminina precisa se submeter, não por si mesma.
Mais um desses trabalhos.
Essa mesma figura, a minha avó materna, incutiu em mim o pavor de engordar. Minha avó, hoje percebo, sofria de profundos e formadores transtornos alimentares - exemplo disso é que, já no fim de seus dias, o sistema digestivo quase não respondia como esperado mais, resultado de todos os momentos em que vi, inconscientemente, ainda menina, uma ou duas caixas de laxantes ao lado de sua cama. E faço questão de frisar o caráter constitutivo de tais comportamentos transtornados, pois, tal como Elizabeth e Sue, minha avó os transportou para a minha formação psíquica de criança quase que automaticamente, sem perceber, ainda que com dor, sem refletir muito a respeito das possíveis e prováveis consequências duradouras.
Ciente sobre o caráter absolutamente destrutivo dos padrões cruéis impostos por Hollywood às mulheres, Elizabeth, dada a chance, não escolhe fazer diferente - é que o desejo por validação do mesmo sistema doente, apodrecido, estava incrustado nela como uma bactéria. Invariavelmente, sem muita chance, Sue reproduz a vida glamurosa de Elizabeth sem se dar conta de que seu fim seria o mesmo: o reinicio desse ciclo de morte, solidão e desalento.
E aqui, acho que vale um comentário sobre o pavor de Sue em relação à comida. Tal sentimento é reflexo de Elizabeth, e se mostra desde a cena do camarão com Dennis Quaid, o produtor asqueroso que não usa máscara alguma. Desde ali, a diretora quer que sintamos repulsa, que entendamos a comida como algo nojento, sempre ligado à decomposição - escancarada, depois, pelas carcaças de frango. Decomposição invariavelmente ligada, também, à Elizabeth. Não sem motivos, a forma que Elizabeth escolhe para diretamente violentar Sue é através do abuso da comida, sempre de forma exagerada, pavorosa, asquerosa, suja. O asco reiterado, ligado à comida, sempre com a função de não nos permitir esquecer do que se trata: no fundo, o demônio é o mesmo (afinal, lembre-se, vocês são uma só), o pavor de deformar o próprio corpo. Carcaças de frango, cabeças de camarões parcialmente devorados, linguiças escuras e possivelmente estragadas, todo o conjunto é um lembrete constante do estado decrépito de uma artista em decadência. Decadência física, claro, mas não só.
Da mesma forma que ignora muitos dos indicadores de que ela segue sendo uma mulher lindíssima, Elizabeth ignora muitos dos sinais vermelhos que lhes são oferecidos desde o primeiro contato com a substância. Ninguém, em sã consciência, seguiria adiante com a oferta de uma voz desconhecida e macabra, que em momento algum dá muitas informações precisas sobre qualquer coisa que valha. Ainda assim, ela vai até o endereço indicado. Endereço, de novo, que ninguém em sã consciência visitaria. Um beco, um lugar que você precisa se encolher para entrar, o último sinal de alerta que Elizabeth ignora dado o verdadeiro desespero em que se encontra: ela não está em sã consciência. E chega até lá com o casaco amarelo de quem implora e faz de tudo por atenção.
A conclusão, com o nascimento de um monstro que mescla Elizabeth e Sue, desagradou alguns, como a ótima Isabela Boscov. Pode parecer apressada ou excessiva para alguns, concordo, mas, particularmente, para mim, foi a cereja do bolo. Todo o exagero de todos os outros aspectos do filme são essenciais para que as personagens cheguem àquela cena em que Elizabeth chora, desesperada por manter sua única parte amável, Sue, viva - que, em retorno, espanca sua matrix sem piedade e sem pausa.
Com a escolha de fundir cenas de socos e agressões com o dizer das instruções de uso da substância, “Lembre-se: vocês são uma só”, Coralie Fargeat colocou a pá de cal que talvez muitas de nós considerassem dispensável, mas nem por isso menos acurada. Toda vez que você se agride, se deforma, se contorce, se diminui, se violenta, se compara; toda vez que você é brutal consigo mesma, que sente inveja da própria jovialidade de outrora, que tem certeza que seu valor está atrelado à forma física e à maneira como você se apresenta; toda vez que se lembra que sua maior crítica é a própria voz que você carrega e autoriza que grite consigo mesma, reiteradas vezes num mesmo dia, lembre-se: vocês são uma só.
…E, enquanto isso, cuide de si mesma.
Um beijo e até daqui a pouco.
Eu amei cada momento desse filme, sua análise abrangeu muita coisa! Sobre o final, também gostei demais. Ele é uma forma de esfregar na cara daquele público (que somos nós também) a parcela de responsabilidade que lhes cabe por tudo que foi feito com ela ao longo dos anos. E que aquele monstro é resultado disso. Mas Hollywood é tão canalha que ao ver o resultado monstruoso faz o que aquelas pessoas fizeram: dá as costas, mostra nojo. Achei brilhante. E tem uma referência à Medusa ali no finalzinho pra reforçar o quanto a mulher é culpada por tudo, sempre. É muito genial. Fui pesquisar essa diretora depois de ver o filme e vi um curta que ela fez há uns anos "Reality +". Segue a mesma temática, vale muito a pena!
puts❤️