De algumas coisas eu me lembro
Era domingo. Eu havia acordado com muita dor no meu coração. Não figurativamente, digo, meu coração, o órgão mesmo, doía. “Não consigo respirar sem doer meu coração”, lembro de ter dito à minha mãe. Tomamos café da manhã, pão francês e ovo mexido, com um achocolatado, e fomos ao hospital.
Naquela semana, uma excursão da escola sairia de Vitória com rumo a Belo Horizonte, levando a turma da sexta série, sob os atentos cuidados de Milena, minha querida professora de História. Passaríamos por Ouro Preto, também, cidade que me despertava certo fascínio desde que me entendia por gente. Eu, obviamente, estava muito animada para aquela viagem. Foi o que bastou para uma médica, naquela sala de emergências, olhar para mim e dizer: “Essa dor no peito, criança, é normal - você está ansiosa”.
Mas eu conhecia a ansiedade, ela era uma velha amiga, já naquela época. Sim, é verdade, uma amiga que por vezes causava sintomas físicos, mas havia ali algo que não batia. Dentro de mim, eu sabia que não era ela.
Voltamos para casa. Deitei no quarto dos meus pais, porque a cama era maior do que a minha, e eu precisava de espaço para poder lidar com todo o desconforto que meu corpo lutava para combater. Lembro de ter tapado os olhos com alguma manta. Lembro de levantar algumas vezes para falar algo com a minha mãe. Lembro especificamente de chamar por seu nome quando eu segurava, aí sim com muita ansiedade, o que poderia ser o terceiro, quarto ou quinto vômito do dia. Naquela hora, fotografada na memória, sei que vomitei água.
Não me recordo como o tempo passou desde aquele domingo até a sexta-feira. Recordo que foi um golpe muito duro. Eu chorava todos os dias. Minha cabeça doía, todo o meu corpo parecia doer, e então apareceu a temida febre, que não deu sossego aos meus pais. Pedi a Deus, num suplício, que se fosse para viver com aquilo, que então Ele me levasse de vez. Sei, até hoje, que nunca havia conhecido desamparo igual ao que senti quando fiz tal pedido. Me vi completamente rendida.
Voltamos ao hospital talvez duas vezes antes da sexta-feira. Na segunda visita, a ansiedade havia perdido seu lugar para o diagnóstico de uma “virose” (que significa que médico nenhum conseguiu perceber algo mais concreto, em quase todos os casos). Na sexta-feira, a virose virou meningite meningocócica, e eu me percebi paralisada no espaço-tempo. Quando dobrei o pescoço e a enfermeira cochichou para a médica algo a respeito das “pintinhas vermelhas” no meu corpo, imediatamente me levaram para uma salinha que me isolaria do restante do mundo.
Quando deitei na maca, naquela sala fria, virei o corpo para o lado com dificuldade, olhando para a minha mãe como uma criança que busca respostas, numa cumplicidade que sempre foi muito nossa. Uma enfermeira de pele escura, a mesma que estava, antes, conversando com a médica, entrou pela porta, pegou a mão da minha mãe e perguntou: “Mãe, a senhora acredita em Deus?”, ao que minha mãe respondeu que sim, já não lembro se verbalmente ou só com um aceno de cabeça. Ela, então, emendou: “Pois comece a rezar, porque eu já estou fazendo isso há um tempo”. Dias depois, eu descobriria que a meningite é considerada um quadro médico que pode levar ao óbito entre 24 e 72 horas desde os primeiros sintomas. Eu senti dor da manhã de domingo à tarde de sexta-feira. Foram cerca de 130 horas. Penso nessa conta todos os dias da minha vida desde então.
Naquela altura, eu era uma menina de 14 anos. Minha rotina consistia em ir à escola pela manhã e ter a tarde livre para aulas de inglês (e, mais tarde, francês), leitura, dever de casa e alguma atividade física (que podia ser vôlei, basquete ou handebol, já não me lembro, sempre no time da escola). Internet, também, onde eu tinha amigos virtuais, muitos deles que conheci no falecido Orkut. Gostava muito dos Jonas Brothers, ainda não conhecia o Twitter (nem sei se já existia). Tinha poucas amigas na escola, mas Nicole era a melhor desde a terceira ou quarta série. Éramos unha e carne, costumávamos dizer que a gente se completava perfeitamente - ela, sempre de preto; eu, quase sempre com algo rosa. Nicole faz aniversário pouco depois da primeira quinzena de outubro, motivo pelo qual me recordo com precisão que havíamos estado juntas há pelo menos umas duas semanas no condomínio dela, em comemoração. Lembro, ainda, que passamos parte de outubro remoendo o caso Eloá, e nossos corações se apertaram quando vimos a entrevista da amiga que sobreviveu, numa edição do Fantástico. Naiara, o nome dela. Deus me livre, eu jamais conseguiria falar de você no passado.
Não sei quanto tempo passei dormindo. Entre a UTI e o quarto individual, pouca coisa me restou na memória. Sei que dormi, muito, não sei dizer se foi um quadro de coma induzido ou só muito sono, por causa dos remédios. Não me pergunte quantos dias foram, eu não me lembro; meus pais, muito menos. Sei que ninguém podia me visitar por muito tempo, e quase sempre a visita era minha mãe. Pergunto ao meu pai, ele diz que deve ter ido uma vez só, porque minha mãe insistia em ir, pois ela prezava, principalmente, pela minha higiene. Não me recordo se cheguei a tomar banho na UTI, penso que a tarefa de me limpar era da minha mãe e das enfermeiras, talvez com paninhos ou algo do gênero.
Ainda consigo ouvir o som dos aparelhos. Bip bip bip. Incessantemente, dia e noite. E as trocas de curativos, o sangue, as marcas nos meus braços. Bip bip bip. O frio, sempre. O entra e sai de pessoas que eu não conhecia, mas das quais dependia minha vida. Bip bip bip. Lembro-me, com pesar, que, naqueles dias, minha mãe só podia estar comigo vestindo roupas especiais de proteção, do tipo que eu só voltaria a ver novamente em 2020. Não lembro se a vi de fato ou de relance. De novo, minhas memórias são escassas. Acho que tentar rememorar os dias na UTI é uma tarefa quase impossível, de modo que minha eu adolescente se convenceu de que aconteceu ali algo extracorpóreo - passei a criar lembranças nas quais eu dormia pacificamente por um tempo, caminhava na “direção da luz” (luz branca, fria, como frio era aquele lugar), como costumam dizer, conversava com pessoas já desencarnadas e resolvia voltar. Assim, resolvia, e pronto. Até hoje, acho que penso naqueles dias dessa forma.
Depois, lembro de acordar num quarto individual. Um enfermeiro muito gentil me guiou até lá, e, quando acordei, ele me perguntou meu nome. “Flora, eu me chamo Flora”, contei a ele. Disse, ainda, que tinha uma amiga muito próxima, Donatella, e que ela não demoraria a ir me visitar. Também disse que era flamenguista. O rapaz ouviu e conversou muito comigo, trivialidades tantas, até a chegada da minha mãe. “Estou aqui conversando com a minha amiga Flora”, disse ele, rindo, enquanto minha mãe olhava para o adesivo no meu peito que dizia, em letras garrafais: R-A-F-A-E-L-A. “E ela torce para o Mengão”, emendou, momento em que eu caí em mim e protestei, brava, algo na linha de: “Rafaela, meu nome é Rafaela, e eu torço pro Galo!”. Anestesia é um negócio maluco, veja você, eu virei personagem da novela das oito, que eu nem assistia, e podia jurar que era tudo aquilo mesmo, naquele momento. Minha mãe deu um sorriso de orelha à orelha, e nós três caímos na gargalhada.
Lembro que minha mãe sentia muita culpa. Nos primeiros dias no quarto, quando insisti que ela me levasse um livro para ler, ela negou por uns três ou quatro dias. Dizia que podia prejudicar minha visão. Bobagem, eu pensava, sem ter a dimensão do que ela estava querendo dizer com aquela negação. Um dia, ela me falou que aquela doença só podia ser castigo de Deus, por ela passar tanto tempo trabalhando, abdicando de conviver comigo. Nunca me esqueci disso, em específico. Anos depois, eu viria a pensar sobre como o fardo é tão profundamente cruel e brutal com mulheres e mães. Trabalhar, sim, mas só o suficiente para não esquecer que há por aí no mundo uma parte de você, uma que depende dos seus acertos e pode vir a penar com os seus erros. Meningite, que forma mais terrível de ser lembrada que sua filha precisa de você. Sei, hoje, que não se tratava disso. Deus não pune uma mãe. Muito menos uma que, desde o começo, sempre intencionou fazer tudo certo.
Estar em contato com a morte muda tudo. De repente, a briga que tive com o meu melhor amigo não importava mais. Durante todos aqueles dias internada, eu pensava que alguém tinha que avisar a ele que eu estava bem, que eu estava viva. William morava no sul, se ninguém avisasse a ele, ele não saberia. Mas, sobretudo, alguém precisava dizer a ele que eu o amava, que queria que pudéssemos nos perdoar e seguir com a nossa amizade. A ausência de uma conversa que arrumasse as arestas antes que eu morresse, ouso dizer, foi provavelmente um dos fatores pelos quais eu precisei lutar para sair daquele hospital viva. William já não existe na minha vida, e provavelmente nunca lerá esse texto, mas essa lição eu jamais esqueci. O clichê do “a gente nunca sabe o dia de amanhã” pautou os meus dias imediatamente depois da doença, e eu precisei me forçar a superar que nunca saberei, e que preciso estar confortável com o não saber somente o suficiente para não deixar de ter coragem de estar viva. De querer estar viva, também.
Às vezes, retomo as memórias daquele período e tento pensar no cotidiano das pessoas ao meu redor. Meu pai, à época, escreveu um bilhete a próprio punho, que tenho até hoje, em que ele narrava os dias dele, na nossa casa, sem mim. “Como é triste”, o título do texto. Ele dizia: como é triste acordar e não precisar te chamar para a escola, como o Ozzy fica triste de não ouvir sua voz, assim e assado. Como é triste. Penso na minha mãe, absolutamente sozinha, e em todos os momentos em que ela precisou esperar fora do quarto até que liberassem a entrada dela; não é natural que alguém tenha de autorizar que uma mãe esteja com a filha, há algo de incerto nesse estado de coisas. Penso no meu pai precisando seguir com a vida entre o encerramento de um ciclo (meu pai se aposentou naqueles dias) e a possibilidade de não mais ser pai de menina, um dos papéis que ele mais gostou de viver, definitivamente o que fez de melhor. Penso no meu irmão, aos dezessete, encarando um vestibular entre tantas “e sua irmã?” que precisava responder, não sem pesar, tantas vezes ao dia. Penso nos meus amigos de escola, na cadeira vazia, na viagem que não fiz. Lembro da minha professora Milena chorar. Lembro que recebi a visita de um médico do Estado do Espírito Santo, visto que meu caso precisaria ser rastreado a fim de evitar que a doença se espalhasse. Eu, um ser quase radioativo. Penso nos dias que se passaram fora daquele hospital enquanto minha vida se resumia àquelas paredes brancas, tentando imaginar o mundo sem mim - que loucura pensar que ele seguiu em frente, quando tudo em mim precisava de calma e de tempo. Paralisada, só eu. Tenho lembranças latentes do cheiro daquele lugar. E me lembro com riqueza de detalhes do frio que se fazia presente em absolutamente todos os cômodos do prédio.
Como é triste.
Nos dias que seguiram à alta, determinada a retomar as coisas, fui com amigas ver Crepúsculo no cinema. Há uma cena, já no finalzinho, em que Bella, a mocinha, diz: “a morte é pacífica, fácil… a vida é mais difícil”. Bobo, claro, mas chorei de soluçar. Nada na vida de uma menina de 14 anos foi mais difícil do que passar por aquilo. Hoje, olhando pra trás, ainda me emociona o milagre de poder ter ido ver Crepúsculo no cinema. De poder ter dançado músicas do High School Musical 3, na chuva, com uma amiga de escola, Bruna. De poder ter ouvido Taylor Swift naquele hospital. E de tudo, absolutamente tudo, que se seguiu desde então. Escrevo como forma de lembrar, afinal, é muito mais fácil esquecer. Escrevo, porque só escreve quem está vivo.
Rafa, sou apaixonada pela sua escrita. Como é bom ler uma narrativa assim! Senti como se a gente estivesse tomando um cafezinho e você contando o causo. Feliz demais que o substack esteja permitindo retomar esse jeito de compartilhar o mundo, tal qual uma carta pra se ler com calma.
Que bom que você está aqui para escrever! Você narrou essa experiência tão difícil com muita delicadeza e só nos resta agradecer por ter compartilhado com a gente. Tenho pra mim que escrever é uma das melhores formas de processar esses momentos do tipo "a vida é antes e depois disso".