Anatomia de uma queda
Pensamentos sobre direito, linguagem e gênero num dos melhores filmes que já vi
Sexta passada, resolvemos dar início à nossa tentativa de ver alguns dos filmes indicados ao Oscar. Tentativa, porque, de uns anos pra cá, perdi quase todo o interesse pela cerimônia, muito por causa das problemáticas de gênero, raça e coisa e tal, mas também porque os filmes andam meio blé. Cá entre nós, né. Ao menos, é o que eu acho.
Mas, resolvemos tentar. O primeiro, sobre o qual eu sabia pouco, foi o francês Anatomia de uma queda (Anatomie d'une chute, dirigido por Justine Triet). Meu noivo costuma dizer que eu decido se detesto ou amo algo já nos primeiros minutos. Nos primeiros minutos desse filme, eu já estava balbuciando repetidamente que ele era genial.
Segundo o Google, a sinopse é a seguinte: “Durante o último ano, Sandra, uma escritora alemã, e Samuel, seu marido francês, viveram juntos com Daniel, o filho de 11 anos do casal, em uma pequena e isolada cidade nos Alpes. Quando Samuel é encontrado morto, a polícia passa a tratar o caso como um suposto homicídio, e Sandra se torna a principal suspeita.”
Aviso de spoiler a partir daqui.
Meio que na linha de Capitu traiu x não traiu, a trama se desenvolve a partir de uma dúvida sobre a qual os espectadores nunca terão qualquer resposta. Eu não sei o que acho, se Sandra matou ou não o marido, direta ou indiretamente, mas não me importa. Não foi o que me pegou no filme. O que me pegou foram as dinâmicas sobre as quais a gente pode refletir a partir dele.
Do ponto de vista do processo penal, uma coisa que se evidencia no filme é a questão da memória. Há um momento em que o filho do casal, Daniel, um garoto com deficiência visual, afirma que ouviu, no dia do fato, os pais conversarem em tom ameno. Mas havia música tocando. Pois bem, Daniel é colocado para ouvir um mesmo diálogo em diferentes tons de vozes, mais altos, mais baixos, abafados ou não. Eis que, depois de algum tempo, ele se lembra que estava em um lugar diferente da casa. Ora, se a memória dele foi capaz de criar uma lembrança em que ele estava fora e não dentro de casa, no frio e não no calor, mais longe da música e, ao mesmo tempo, menos perto das vozes… o que mais ela poderia inventar? Poderia inventar que os pais conversaram? Poderia criar um cenário onde eles não conversavam, mas gritavam e se agrediam? Poderia criar um momento em que nada acontece, em que o silêncio é a única presença? A resposta é: sem dúvida. Por isso, falamos que é impossível encontrar a verdade num processo. Porque tudo depende. Depende de tudo, de tanto. De tantos.
Outro ponto é a questão da linguagem (beijo, Jana Viscardi!). Sandra, a agora investigada, precisa contar sua versão dos fatos na língua do tribunal, francês. Mas Sandra é alemã. O marido, Samuel, que era francês. Eles se falavam em inglês - e Sandra, em geral, comunica-se através desse idioma com todos os habitantes dos Alpes. Há uma cena em que o filho a ensina francês em tom jocoso. O ponto é: ela não domina o idioma, claramente. E se a sua memória pode criar lembranças tão fortes, como é que você fala de suas criações, a partir da necessidade de convencer um júri (pois, no momento em que você senta no banco dos réus, deixa de ser sobre a verdade que você tem a contar, é unicamente sobre como você consegue falar sobre ela), num idioma que você não domina? Complexo. E a forma como a diretora escolhe abordar isso não é nem um pouco sutil, mas não menos brilhante. O jogo de câmeras, os monólogos e os diálogos, o grande teatro do júri apresentado com uma maestria admirável.
Por fim, mas não menos importante, as dinâmicas de gênero que o filme abordam são bastante interessantes, porque desafiam o que a gente tem no status quo. Quando Sandra conta a história do ponto de vista dela, o que fica claro é que a mudança para os Alpes foi uma decisão inteiramente baseada nos desejos do marido - que queria um pouco mais de silêncio e sossego para terminar projetos literários. A gente se sente inclinado a sentir empatia, a velha história da mulher que abre mão de si em prol do marido.
MAS o buraco é mais embaixo e outro lado dessa verdade vem à tona quando uma gravação de uma conversa do casal (feita um dia antes da morte de Samuel) é exposta ao tribunal. A partir daí, o que temos é um casal conflituoso, em que, aparentemente, o “papel de mulher” - leia-se: de cuidados domésticos, inclusive no que diz respeito ao filho - parece recair mais sobre Samuel do que sobre Sandra, uma vez que ele alega que não consegue finalizar seus projetos, porque está sempre sobrecarregado cuidando da casa e do garoto. E tem uma complicação maior, que vem do fato de que a deficiência visual do garoto ocorreu por um erro do pai, enfim, complexidades que vão se somando e tornando tudo mais… interessante, profundo, provocador. Quem é a vítima e quem é o algoz? Quais são os papéis que nos são apresentados & qual a importância deles aqui? Essa pergunta paira no ar durante todo o filme, mas a resposta não aparece - propositalmente.
Quando essa conversa do casal é apresentada, aliás, algo interessante acontece: o espectador vê as cenas, mas é logo lembrado que o tribunal só tem acesso ao áudio. E, num áudio, a depender do ponto ou do tom, uma agressão foi uma agressão a A ou a B, dependendo de quem ouve, de como ouve, de onde veio, etc. e tal. Ou mesmo: uma agressão foi uma agressão de fato? Qual o peso do que é dito ali no possível resultado, seja ele A) acidente, B) suicídio ou C) homicídio? E que casamento é este, em que um dos lados tem sempre uma versão da própria realidade, tendendo a favorecer a si em detrimento do outro? Até que ponto faz sentido tolerar algumas coisas, até que ponto a dinâmica naquele casamento comporta o que se entende por normal, tolerável, numa sociedade como essa nossa? Qual versão vai prevalecer no contexto maior depende inteiramente da boa ou má vontade de quem interpreta.
Enfim, poucas respostas, muitas questões & muita gritaria de minha parte (ninguém aguenta mais, eu sei), mas, querido leitor, veja esse filme, eu imploro. Preciso ter com quem falar. Vai ser a única coisa na minha cabeça por algum tempo.
Me escreve caso já tenha visto.
A gente vai se falando!
Um beijo.