Sobre a baixa manutenção - uma carta aberta aos meus amigos
Tenho sido relapsa, peço desculpas.
Há uns dias twittei sobre a tal “amizade de baixa manutenção”, expressão que ganhou popularidade no Twitter, o site da saúde para lá de mental. Tenho pensado muito a respeito dela. No começo, eu acho que o entendia como referência à ideia de amizade que não te cobra presença constante, que aceita ser o ombro amigo quando você precisa, ainda que vocês não se falem todos os dias. Aquela amizade com quem você se comunica a cada lua cheia e nada parece ter mudado: permanece ali o companheirismo, você genuinamente se interessa por tudo que aquela pessoa tem a dizer, você quer saber os mínimos detalhes da vida dela, mas vocês simplesmente não se falam com a mesma frequência de outrora.
Cá entre nós, eu amo lembrar que na época da escola podia falar com minhas amigas todos os dias. Talvez essa seja uma das coisas que mais me fazem falta, o dia a dia da convivência escolar. Nossas conversas eram dado imutável da realidade - nem quando eu ia à escola emburrada, por qualquer motivo que fosse, decidida a passar o dia calada, nem ali eu conseguia ultrapassar a barreira do real. Não, nem ali. Naqueles dias, bastavam alguns minutos na companhia das minhas amigas para danar a tagarelar sobre qualquer coisa que fosse, do céu azul às meias engraçadas do boyzinho de quem eu gostava, de como usar a aula de educação física pra jogar queimada às roupas que usaríamos para ir ao cinema ver o novo do Crepúsculo.
Hoje eu já sei nem sei quem ainda gosta do Crepúsculo no meu grupo de amizades.
E não é sobre presença física. Por algum tempo, pensei que fosse, que o problema era eu ter mudado de país. Convenhamos, não deixa de ser um problema, mas vai além. Quando estou em Vitória, meu grupo de amigas e eu temos dificuldade de conseguir marcar uma reunião. Fui percebendo que o problema tem nome, começa com c, e sobre ele todo mundo já cansou de falar, ainda que não tenhamos alcançado a exaustão necessária pra fazer mais coisa a respeito. Mas esse texto é menos sobre o capitalismo e mais sobre amizade. Se deixarmos que o monstro grande e sem barba (que barba é pra gente sexy) determine nossos círculos sociais de tal modo que passemos a nos eximir de nossa própria responsabilidade perante aqueles que amamos, teremos falhado miserável e irreversivelmente.
É difícil marcar uma reunião, porque todo mundo está sempre muito ocupada. E quando não está, a gente tá cansada. Eu não quero ser a pessoa que, ao chegar em casa, depois de duas horas de deslocamento e nove de trabalho, se sente obrigada - porque só na base da obrigação e do sentimento de culpa, mesmo, que nunca na história da humanidade ajudaram alguém a sair do buraco - a mandar uma mensagem, só pra que a minha amiga sinta que eu ainda a amo. Ela tem que saber que eu a amo, mas que estou cansada. Às vezes, não quero falar nem comigo mesma, só que de mim não consigo correr. Adiar a mensagem pra dormir uma horinha mais cedo (uma mensagem é enviada em questão de minutos, eu sei, mas eu sou aquela millennial horrorosa que passa vinte rolando o Tiktok e deixa a mensagem pra lá), sim, isso eu consigo fazer.
Mas, vejam, isso não me exime de fazer certa autocrítica. Eu estou sempre cansada, mas se consigo abrir o Tiktok, mesmo sonolenta, eu preciso conseguir também arrumar tempo para as minhas amizades, que são algumas das coisas pelas quais mais prezo na vida. Não há rotina cansativa que deva ter a capacidade de fazer minhas amigas esquecerem que as amo. Consciente disso, resolvi que 2024 vai ser o ano em que vou fazer diferente. Se não consigo mais ser a pessoa que sempre diz “vamos marcar um Facetime” e nunca marca, se não quero mais que minhas amigas e meus amigos pensem que vivo bem sem eles, se me recuso a deixar para lá a urgência da presença (não física, vejam bem), preciso dizer: “ei, estou aqui, sua vida me é cara e importante, como andam seus dias?”.
Só. Uma mensagem a cada quinze dias, um áudio de dois minutos a cada cinco, que seja, é um começo.
Melhor isso do que nada.
Porque no nada há a solidão, a sensação silenciosa & sabotadora de que ninguém se importa comigo, de que minhas lembranças são só uma mão cheia de poeira na cidade grande, de que ninguém vai me ajudar a segurar a onda quando as coisas pesarem, de que eu não tenho amigos e sou muito para eles, o que não é verdade. Não é verdade mesmo.
Há uma música da Taylor Swift - vocês sabem, Taylor Swift por vezes se confunde, na minha imaginação, com a minha própria vida, e contra isso não luto mais - em que ela descreve a sensação de estar constantemente ansiosa a respeito de suas relações, como se elas fossem coisas frágeis demais, como se um passo em falso pudesse fazer tudo ruir do dia pra noite. Coisas frágeis facilmente quebráveis pelo próprio ser que as detém.
'Cause they see right through me
They see right through me
They see right through
Can you see right through me?
They see right through
They see right through me
I see right through me
I see right through me
Nessa música, eu sinto como se a narradora estivesse se despindo completamente na minha frente: eu sou assim, olhe bem, um amontoado de coisas confusas, nebulosas, uma coleção de erros com os quais nem todo mundo soube lidar - eu perdi gente pra caramba no processo, é tudo culpa minha. Todas as vezes em que me expressei errado, aqueles momentos em que escolhi as piores palavras, a navalha cortando no meio da explosão. Eu que não sei lidar, eu que não sei cuidar, eu que sou difícil, eu que falo além do necessário, eu, eu que piso em falso toda vez. Eu, a terceira amiga da dupla. Todos os meus inimigos começaram como amigos.
All the king's horses, all the king's men
Couldn't put me together again
'Cause all of my enemies started out friends
Help me hold onto you
Eu que sinto muito, eu que tento muito, eu que poderia tentar mais. Eu que deveria dizer mais. Eu que deveria abraçar mais, eu que deveria conversar melhor. Eu que deveria organizar as festas que nunca organizaram pra mim. Eu que deveria aprender a aceitar o que podem me dar, não o que eu penso que na minha régua faria sentido. Eu que devo saber ler quem merece o que tenho de melhor - porque, é, eu tenho o melhor também - e quem nunca deveria ter tido qualquer acesso para depois me dizer que sou coisas que não sou. Eu que devo saber separar as coisas. Eu que devo diferenciar amigo de colega, conhecido de amigo. Ô termo pesado este: amigo.
I've been the archer
I've been the prey
Who could ever leave me, darling?
But who could stay?
Tenho pouco amigos. Costumo dizer que não encho uma mão. Mas, Deus, como eles são preciosos. Porque eles me trazem de volta pro chão, sem empurrar, quase como quando você pega um gatinho sonolento e o coloca fora da cama, para que ele possa se aconchegar, se acostumar e aí, então, acordar. Com o carinho de quem ama, sabe? Gente que sabe dizer quem sou, que já viu o pior e o melhor, e não saiu correndo diante de nenhum dos dois. Gente cujos dedos não apontam com a dureza de quem não se importa se você vive ou morre - gente para quem a gente vai morrendo um pouquinho a cada dia, e tudo bem. Gente que nunca vai esquecer do carinho para me dizer da realidade, sem jamais tentar apresentá-la diferente do que é. Quero amigos que saibam me dizer o que querem e que saibam me acolher nas tempestades. Quero amigos que me lembrem do melhor de mim, que é o melhor deles, porque a concretude dessas relações nos transforma numa coisa só, por vezes.
You could stay.
Não sou a pessoa mais fácil, é verdade, mas estou longe de ser alguém que não merece ser amada. E, para ser amada, eu aprendi, a gente precisa aprender a demonstrar amor, para não (se) deixar cair no silêncio. É demonstrando esse amor que eu lembro que é ele que me forma. Sem ele, eu me perco de mim. Preciso mandar mais mensagens para os meus amigos. Não todo dia, mas preciso mandar alguma mensagem. Resolvi começar com essa carta aqui.
Amo vocês. Tenho sido relapsa, peço desculpas.
Vocês ainda gostam do Crepúsculo?
Vou mandar um áudio, peraí.
Tenho curtido isso aqui:
Uma dobradinha do Renaissance: gente, eu não sou a pessoa dos álbuns, sabe? Eu sou aquela pessoa que ouve música solta, que não obedece a ordem sugerida pelo artista, que não busca entender o conceito da coisa etc., mas que grande erro não ter me atentado antes pra como essas duas músicas são encaixadas numa coisa só. Eu tou obcecada, minha dobradinha do dia a dia indo pro trabalho. Te amo, Beyoncé, volte mais vezes (e me leva pra Salvador junto!)
O primeiro livro que peguei pra ler esse ano, “The Parenthood Dilemma: Procreation in the Age of Uncertainty”, da autora Gina Rushton. Desde o ano passado, tenho lido alguns livros relacionados à maternidade - dã, eu sou uma mulher prestes a fazer trinta, tem como ficar mais clichê que isso? Enfim, o livro é muuuito interessante, começou a ser pensado quando a autora descobriu que talvez deixasse de ser fértil “em breve”, e como isso a colocou para pensar de fato sobre o maternar. Ou seja, ela vai te convidando pra uma dança que passa por reflexões a respeito de justiça reprodutiva, trabalho emocional, desigualdades tantas & as de sempre. Parece que eu estou vendo alguém circular pelos pensamentos que tanto me têm ocorrido há meses. E nisso algumas conclusões vão aparecendo. Dá um texto inteiro, vamos seguindo…
Olar! Aguardando cartinha falando sobre o livro maternar :) Beijos
Me identifiquei médio com essa carta, pq embora eu seja uma pessoa que pode demorar meses pra responder uma mensagem (eu culpo sem problemas o tdah por isso, já tenho muita coisa pra organizar na cabeça e acontece kkkry), eu também sempre fui a pessoa que ia atrás de perguntar como as amigas do grupo estavam, a animar de marcar uma saída, chamar pra tomar um cafezinho, puxar assunto no grupo do whatsapp. Mas isso mudou desde o meu diagnóstico de depressão no meio da pandemia, com o qual eu ainda tenho que lidar e que mudou completamente minha dinâmica social. Hoje em dia eu luto muito pra conseguir interagir socialmente, pra sair de casa (5 meses de isolamento quase total em pós-operatório tbm não ajudaram, ainda estou voltando aos poucos pq minha cirurgia só tem 6 meses), e o celular me deixa profundamente hiperestimulada e mentalmente exausta, ou seja, até pra presença online eu tô cansada. É um eterno trabalho de equilibrar pratinhos, mas acredito que uma mensagem a cada 15 dias é um ótimo começo e vou adotar pra mim também, uma das minhas grandes metas desse ano é cultivar as minhas amizades, pq vejo que quase todo mundo ao meu redor também tá cansado e preso na rodinha de hamster do capitalismo e não consegue manter relações direito, mas esse pequeno esforço tem um benefício tão grande que vale a pena lutar sim e não se deixar morrer aos poucos.